São praticamente irresistíveis os vestidos de verão da Primark, a marca de fast fashion inglesa que faz a festa das turistas brasileiras e veste seis entre dez jovenzinhas na ilha da rainha. Com cinco libras e um corpinho de 20, dá para sair vestida à lá Kate Moss, a mais cool das modelos britânicas. Onde está o erro? A pechincha estilosa ficou politicamente incorreta demais depois do trágico desmoronamento de um edifício em Bangladesh onde são fabricadas essas peças, assim como parte da coleção da italiana Benetton, da espanhola Mango e da canadense Joe Fresh, todas grifes com lojas espalhadas pelos Estados Unidos e as grandes capitais européias. Papéis com logotipo de C&A e Wal-Mart também foram achados no cenário de destruição, morte e rolos de tecido colorido.
Ameaçadas de ter o dia descontado, costureiras foram obrigadas a trabalhar no prédio já com rachaduras aparentes e barulhos assustadores. Sexta-feira, o número de mortos estava em mais de 300 e pode aumentar, porque três mil pessoas estavam no edifício de oito andares antes de tudo virar escombros. Desde então, milhares de pessoas protestam nas ruas, furiosas e angustiadas com o novo desastre mais do que anunciado e a demora no socorro às vítimas. O dono do imóvel, como esperado, sumiu.
As imagens são horríveis e contrastam com a descontração da moda produzida nestas fábricas. É um negócio que responde por 80% das exportações de Bangladesh, emprega cerca de três milhões de pessoas, com salários médios de R$ 0,37 por hora, num trabalho sob constante pressão para cumprir o prazo exigido pelas empresas ocidentais, executado sem as condições mínimas de segurança, num dos países mais pobres do mundo.
Nada disso chega a ser surpreendente, talvez só a revolta diante da tragédia. Com pequenas variações estas tragédias se repetem e comprometem a reputação de empresas tão ricas e tecnologicamente sofisticadas como a Apple, que terceiriza a montagem de iPhones e iPads para a Foxconn, fábrica chinesa manchada por casos de morte e condições degradantes de trabalho — a denúncia rendeu ao “New York Times” um Prêmio Pulitzer. Ou a Zara, cujo dono está entre os homens mais ricos do mundo, mas que comprava produtos fabricados com trabalho escravo. O caso da Nike explorando o trabalho infantil foi um dos primeiros a virar escândalo, uma história já transformada em livro mas ainda em voga em pleno século XXI.
Em Bangladesh, ativistas contabilizam 700 mortes em acidentes de trabalho no distrito da moda na última década. O pior deles foi o da quarta-feira passada, que aconteceu apenas seis meses depois de um incêndio matar 112 pessoas trabalhando para a grife ENYCE — muito admirada pela turma do rap americano. Dois anos antes, dois outros incêndios acabaram com a vida de outras seis dezenas de costureiras terceirizadas da Gap e da H&M — também marcas de fast fashion, aquelas que rapidamente botam nas vitrines a moda caríssima desfilada nas passarelas pelas grifes de luxo a preços populares.
Desta vez começou uma troca de acusações nada elegante entre estes senhores da moda. Há seis meses, muitos deles tinham prometido assinar um acordo pelo qual financiariam a instalação de equipamentos contra incêndio nas fábricas asiáticas e comprometiam-se a só comprar de fornecedores com um comportamento pelo menos decente no trato com trabalhadores. A Calvin Klein, a Tommy Hilfiger e a alemã Tchibo assinaram o documento, mas muitas outras ainda esperam as concorrentes tomarem a iniciativa, preocupadas com as margens de lucro.
“É inacreditável que essas empresas ainda se recusem a assinar o acordo”, diz Sam Maher do grupo Labour behind the label (Trabalho atrás da marca).
A mudança de cultura só acontecerá com pressão de governos, ONGs e consumidores. No Brasil deu certo no caso dos frigoríficos que se comprometeram a não comprar carne de boi criado em área de desmatamento. E também parcialmente com a madeira retirada clandestinamente da Amazônia, que não tem mais lugar no mercado.
Os consumidores, mais do que as autoridades, têm poder. Muitos já escolhem evitar compras em empresas que corrompem governos, sonegam impostos, impõem péssimas condições de trabalho. Na hora de comprar fruta ou galinha, é fácil: têm a opção de pagar um pouco mais e sentir-se um pouco melhor — seja porque estão cuidando da saúde ou do meio ambiente. Mas no caso da indústria da moda é ridiculamente difícil: a maioria das empresas tem um código de ética cuidadosamente afixado nos sites mas nada disso está nas etiquetas. Só anunciam algodão orgânico, por exemplo, quando é para justificar um preço escandalosamente alto. A pressão dos consumidores pode dar resultados fantásticos, mas sozinha não faz milagres nem evita catástrofes. Os trabalhadores indefesos dos países mais pobres merecem ajuda do mundo ocidental.
Correção
O nome do autor de “Grândola Vila Morena” é Zeca Afonso. Zeca Araújo, como escrevi, é um grande fotografo do Rio.
Policiais apresentam Mohammed Sohel Rana à imprensa, após sua prisão em Daca STRINGER/BANGLADESH / REUTERS
DACA — O dono da fábrica que desabou em Bangladesh, matando centenas de trabalhadores, foi preso, neste domingo (28), quando tentava fugir para a Índia. A esperança de se encontrar mais sobreviventes nos destroços do prédio começa a diminuir.
Mohammed Sohel Rana foi preso por uma força de elite na cidade fronteiriça de Benapole, disse Haibiur Rahman, comandante de polícia de Dhâka, à agência Reuters.